O foco da engenharia civil deve estar muito além da construção civil. Sobretudo deve enfocar os problemas de civilização, mesmo que tal gere novas especialidades para os resolver.
Desde a civilização mais remota a humanidade foi melhorando as suas condições de vida como a segurança, conforto e até o desenvolvimento intelectual. Por exemplo, na sociedade de caçadores-recolectores, contando um período de 50 anos, um humano teria 25% de probabilidade em morrer por morte violenta (Acemoglu e Robison, 2020). A interação, comunicação, cooperação, partilha, instituição permitiram aos humanos criar ambientes com múltiplas valências onde poderiam progredir com maior eficiência (energia mínima, melhor logística, mais escala). As sociedades construíam modelos adaptados aos seus contextos, com mais ou menos vantagens em relação a outras sociedades – a civilização.
A civilização depende de pessoas, matéria, energia, água, informação, dinheiro que fluem. As sociedades construíam cidades, pontes, estradas, barragens para otimizarem os fluxos. No seu fundamento, a engenharia e s fins eram civis e não militares. Para distinguir a engenharia tinha de ser civil.
No mundo atual, o material perde (e tem de perder) importância em relação ao intangível. A humanidade não pode manter a economia de base extrativa para produção e desperdício contínuos. É sério o risco da humanidade se extinguir com o mesmo modelo e que não dá para todos os humanos usufruírem. E não é justo. Lentamente emergem novas palavras de ordem relativas a fatores menos tangíveis como sustentabilidade, humanização, desmaterialização, regeneração, inteligência conectada (pela digitalização).
Um dos principais objetivos da civilização em emergência terá de ser a desmaterialização. Como seres que precisam dos sentidos para adquirir conhecimento do mundo envolvente, é difícil para os humanos perceber como o invisível pode ser mais eficaz do que o tangível. Todavia, o universo é muitíssimo mais vasto do que a mente humana pode conceber. E os nossos sentidos e senso não explicam tudo, pelo contrário.
Uma possível abordagem para a desmaterialização do processo produtivo poderá ser através de sistemas, sendo o próprio corpo humano vivo o principal referencial. Um relatório da NASA de 1965 (Pinker, 2018) definia “o Homem como o sistema computacional com o menor custo com o peso de 68 Kg (150 libras), não linear e multifunções, o qual pode ser produzido em massa por trabalho não qualificado”. Num sistema, o valor não provém tanto do material que o compõe. O corpo humano vivo pode valer em média (mundial) cerca de 45 milhões de euros, mas o custo dos seus materiais totaliza 160 € (DataGenetics, 2017). Esta é a abordagem para as empresas mais valiosas do mundo (GAFA) e os seus produtos prime, como é por exemplo o IPhone, cujo valor dos ativos imobiliários (ou dos materiais) é uma ínfima parte do valor.
O diferencial entre o valor total e o custo dos tangíveis são fatores menos percetíveis como o software e o humanware (Gomes, 2018). O primeiro conceito refere-se a trabalho racional ou institucional, que pode ser codificado, revertido em código binário (bits). O segundo conceito refere-se a fatores intrinsecamente humanos como criatividade, cultura, inteligência, sensibilidade, cooperação, etc. Os processos produtivos estão a substituir os átomos por bits, e os genes serão o próximo foco na criação de tecnologia de informação mais potente (basta ver o RNA e a revolução que está a operar). A tecnologia digital está a desligar a produtividade e a eficiência produtiva da matéria prima não renovável que esgota o planeta e empobrece os povos que dela dependem.
A engenharia civil continua muito focada no tangível. A obra tradicional é executada por tarefas muito físicas e empíricas que requereriam treino manual demorado. Mas, o pessoal disponível é pouco qualificado e escasso. Os engenheiros são obrigados a colmatar falhas do sistema onde faltam quadros médios, como encarregados ou medidores orçamentistas. Resulta num processo de baixa produtividade e eficiência e custos elevados. O ambiente torna-se stressante para os quadros superiores face à permanente urgência, a desenrascar situações não previstas nem planeadas. É um processo que não valoriza o trabalho racional, logo não valoriza o engenho, logo os seus profissionais são mal remunerados.
Mas, mudar o paradigma?
Com a digitalização, cada vez mais o virtual domina o mundo real. Os eventos na realidade tangível precisam de algum tipo de informação que os acionem. São exemplos os planos, orçamentos, contratos, autos de medição, faturas, dinheiro que podem ser digitalizados, transferidos na Internet com custo (quase) zero. Assim, a produção do físico passou a ser consequência de informação, como algoritmos com instruções (em bits) para máquinas. O software está a dominar o processo, logo com o maior valor imputado.
O empreendimento imobiliário integra a obra e muitas outras atividades complementares não tão tangíveis. Mesmo as intervenções de âmbito físico são precedidas por fluxos de ordem virtual. Cada empreendimento tem subjacente uma cadeia de valor em que os agentes apenas permutam informação; cada ação corresponde a um custo e deve acrescentar valor. Portanto, a criação de valor deve muito à interação da linha de intervenientes do processo. Assim para aumentar eficiência, antes de tudo iniciar (sobretudo o que é tangível, caro e irreversível), esta linha deve ser planeada, depois coordenada. Pode ser efetuado por meios digitais. A transformação no objeto tangível (por materiais) pode ser arrumada para o final do processo produtivo, sendo este sobretudo efetuado por trabalho informacional.
Um modelo que retira esforço ao trabalho manual e muscular, imediato, enfatiza atividades ligadas à inteligência e criatividade como são a avaliação (risco, ativos), planeamento, marketing, arquitetura, engenharia, medições e orçamentos, negociação, contrato, controlo. Afinal, com inteligência, o trabalho físico pode ser operado por máquinas, e estas são instruídas por linguagem codificada (bits).
O engenheiro da sociedade industrial 4.0 deverá focar cada vez mais os fluxos informacionais que fazem mover a economia. O engenheiro civil não pode ficar fora da tendência. A atitude deve ser geral para a sociedade senão seguirá num contínuo processo de estagnação e perde posição entre os países mais desenvolvidos. Claro que a desmaterialização da economia, produção imobiliária e engenharia não é caminho fácil face a ancestrais preceitos e costumes a que (quase) todos estamos presos.
Quais as novas especialidades para engenheiros?
A componente física de um empreendimento imobiliário – terreno ou obra – têm um peso enorme no total de custos e tempo de execução, representa o maior nível de risco dada a sua irreversibilidade intrínseca. Portanto, deve existir todo o interesse em analisar toda a cadeia de valor desde o início, ou seja, antes da contratação da equipa projetista e compra do terreno. Os fluxos do mundo físico podem justificar-se, em prospetiva, por fluxos como o tempo e dinheiro, os quais se configuram essenciais para planear e controlar um negócio. Um modelo virtual apenas depende de dados, informação, inteligência e criatividade para simular o projeto, antes de executar o edifício. Não sendo real, pode prevenir-se, criar folga para poder desistir antes de adquirir um prédio caro ou assinar compromissos irreversíveis.
Esta é a função do plano de negócio.
O plano de negócio trabalha de forma iterativa e convergente com diversas variáveis como: requisitos do projeto de promoção e investimento; cadeia de atividades para criar valor (Business Process Modelling and Notation); análise de soluções técnicas para a otimização; plano financeiro e fluxos de caixa (Gomes, 2018).
O plano de negócio é ainda mais pertinente na reabilitação de imóveis (ANAI) quando os potenciais riscos e incertezas são superiores do que na construção nova, por regra um processo mais padronizado. Apenas na fase de conceito e de planeamento é possível estudar as melhores soluções construtivas, procurar a melhor tecnologia, contactar e esclarecer restrições e requisitos do município ou da área do património.
O virtual começa a sobrepor-se ao físico. Este pode ser executado apenas no final de uma cadeia de ações. O conhecimento é integrado na definição virtual das componentes da construção para serem produzidas por robôs e energia renovável que recebem instruções por bits. Aqui ganha relevância a metodologia BIM, pela qual se pode projetar soluções industriais com atributos modulares, em séries repetidas e fácil aplicação em obra com tarefas simples por mão de obra menos qualificada.
Outro âmbito para a engenharia civil é a gestão de projeto, sobretudo a enfocar todo o processo de empreendimento, não apenas o projeto ou a obra como é corrente. Pode recorrer a metodologias digitais como o Integrated Process Delivery e com reforço de formação em imobiliário, gestão; negociação e contratação. Requer inovação dos processos de gestão que interliguem vários conhecimentos e funções além da engenharia.
Como gestor e projetista de fluxos, o engenheiro civil deve preocupar-se com a eficiência das cidades. Para adquirirem um carácter “smart” as cidades precisam de integrar todos os fluxos que a tornam competitiva e atraente. A função deve abranger o projeto e gestão de fluxos de pessoas, veículos autónomos, transportes, energia (renovável produzida em cada imóvel), alimentos (produção e distribuição internas), água potável, esgotos, informação, animação, eventos culturais.
Lisboa, 22 de março de 2021
João Correia Gomes
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