O que deve ser a Engenharia?
Para perceber o lugar da engenharia no ambiente socioeconómico em construção é preciso encontrar uma definição compatível que justifique a sua utilidade. A tecnologia (como a IA) e as amplas metodologias criadas pela mesma (como por exemplo o BIM) tornam obsoleta qualquer definição clássica de engenharia. Esta poderia até ser coerente numa economia de bens tangíveis dependente da extração material. Já não deve focar apenas os engenhos tangíveis, como edifícios ou máquinas, pois não satisfaz os requisitos das ciências de informação, inteligência artificial ou biotecnologia. No ambiente desmaterializado que se avizinha manter tal conceito levará ao caminho da estagnação e insignificância. Uma nova definição para engenharia deve ser simples e curta, mas projetar uma utilidade compatível com esse ambiente. Como ponto de partida, proponho que a definição seja algo como,
“A resolução de problemas colocados pela sociedade através da ciência e matemática para obter soluções práticas, mas eficientes e sustentáveis”.
Reforça-se a aplicação ativa da ciência e matemática na resolução dos problemas como fator distintivo da engenharia em relação a outras atividades, muitas das quais pretendem ser engenharia sem possuírem a devida formação, apenas pelo título prestigiado. Sem base formativa intensiva nessas disciplinas tais pretendentes “engenharias” não o são de facto.
Não deve entender-se como engenharia a atividade com bases científica e matemática frágeis, talvez mais empírica, que engenheiros aceitem executar apenas para cobrir a notória desorganização e falta de quadros intermédios na estrutura produtiva. E, como em outras profissões de nível superior, um engenheiro deve atualizar-se continuamente para manter as suas competências eficazes e uteis.
Até a engenharia civil terá de mudar. Não deve ser tida como relativa à construção civil. Essa é a visão em que o ramo se arrumou à medida que dela saíram outras especialidades. Mas, o fundamento seria diferente, pois requeria-se distinguir os problemas da sociedade civil, numa era em que os militares dominavam o saber técnico mais sofisticado. O termo “civil” opõe-se ao “militar”. Uma civilização precisa de se afirmar na cultura, língua ou direito, mas também no seu funcionamento. Essa seria a função da engenharia, encontrar soluções para a civilização.
No passado, eram apenas tangíveis, sobretudo infraestruturas: aquedutos; estradas; pontes; canais; túneis; caminhos de ferro. O enfoque ainda não era tanto na construção de edifícios (tradicional) cuja execução estava mais na mão de mestres.
A indústria emergente exigiu a criação de ramos mais especializados a destacar da (única) engenharia existente, como a engenharia mecânica. Com o tempo e tradição, a engenharia civil foi-se acantonando à construção e limitou o seu âmbito. Na essência, esta engenharia deveria manter o princípio de resolver problemas e encontrar soluções para os ambientes de uso civil (ambientes expressos em Gomes, 2018). Por este princípio, a engenharia, sempre como bastião prático de matemática e da ciência deve expandir os seus âmbitos combinando-se com outros saberes, podendo criar novas especialidade de engenharia.
Mas, existem novas necessidades?
Já é lugar comum referir que o mundo vive uma era de mudança. Mas, a grande maioria dos humanos, inclusive os mais informados, não imagina o quão disruptiva esta irá ser. Agora está em causa a própria sobrevivência humana, como espécie em apuros numa natureza em reação (Gates, 2021). A rutura pode ser muito mais abrupta, extensa e rápida do que nos últimos 200 anos combinada. A atual tecnologia é ainda muito grosseira, ineficiente, material, dependente de fósseis, limitada pela escala do planeta.
O desafio é grande e é para a engenharia.
A diferença está na escala nano, na codificação do mundo real e dos processos pelos bites (que permitem maior escala e velocidade da informação) e na vasta gama de surpresas (como a manipulação do ADN). Assim, a transformação operada pela engenharia será muito mais profunda e rápida do que todas as anteriores, mesmo em acumulação. Influenciará a forma como os humanos vivem, trabalham, movimentam e até se alimentam. Como nas revoluções industriais do passado, os sistemas económicos e sociais serão muito afetados, e agora numa escala desconhecida pelos humanos. Os objetivos integram a necessidade de preservação dos ambientes naturais, não apenas o lucro simples por extração do planeta. A equação é muito mais complexa. Em contraste com as abordagens correntes, irão valorizar-se intervenções nos âmbitos da regeneração, desmaterialização, digitalização, descarbonização.
Quem ficar de fora deste movimento irá perder muito mais. O modelo económico atual (ainda tido como eterno) será afetado por efeitos como os seguintes (Rifkin, 2019):
· Os mercados evoluem para redes (de pessoas individuais e coletivas);
· As transações passam a fluxos;
· A clássica relação vendedor/comprador é substituída pelo provedor/utilizador;
· O PIB é substituído por qualidade de vida;
· A produtividade passa a depender da regenerabilidade;
· As externalidades passam a circularidade.
O capitalismo terá de simular um sistema adaptativo como a própria natureza (a copiar). Assim, a inovação será um estado permanente para as poucas economias que progridem. A maioria irá manter os paradigmas do passado numa contínua e agonizante estagnação. Ainda hoje se observa que boa parte dos atores no mercado a anunciar inovações “fora da caixa”, mas afinal continuam em absoluto “dentro da caixa”. A ilusão não passa de inovação do tipo derivativo. Apenas melhora a superfície da tecnologia que já opera. Não há rotura. É um pouco como se, em 1886, Carl Benz desenvolvesse uma carroça mais rápida em vez de inventar o automóvel.
Qual é a melhor atitude para o caminho do progresso?
A engenharia deve entender-se como a fórmula do progresso que cria e aplica tecnologia. Como nas passadas revoluções industriais, também irá influenciar os próximos movimentos sociais, políticos, económicos. Sem tecnologia (a imprensa escrita) nem os movimentos protestantes nem a revolução francesa teriam tido qualquer impacto. Não teriam emergido novas formas de pensar, comportar, ou empreender (WEIRD) as quais originaram classes de humanos que usavam a razão para agir, como os engenheiros, distintas das existentes.
O valor que uma sociedade atribui a engenheiros (ou à ciência) liga-se à sua cultura social. A maioria das sociedades atuais ainda valoriza as ligações de parentesco ou afins acima do mérito. Prevalece a tradição da obediência ao pai (que pode ser autocrático) e a lealdade ao círculo familiar (pode ser a família política), à genealogia de certos apelidos, a certo grupo fraterno (maçonaria) ou à tribo (clube?). As sociedades ainda presas à cultura da família estão no Médio Oriente, África, alguns países da América do Sul, a India, (até a) China, Europa de Leste (e na Europa Ocidental, Portugal tem a pior posição).
Perante tais valores, esse tipo de cultura tende a desvalorizar atributos de planeamento, competência, esforço individual, empreendedorismo, racionalidade, eficiência. Perde a visão da utilidade e de valorização de profissões com caráter racional, como a engenharia. A ciência e conhecimento técnico são subalternos à decisão hierárquica autocrática, muitas vezes subjetiva (baseada em opinião), à lealdade (ao grupo ou chefia), ao interesse privado do grupo. Então, o caminho tende a ser o da estagnação, não do progresso. A engenharia e a ciência servem então para justificar a decisão subjetiva da hierarquia, muitas vezes já tomada antes do parecer técnico. Observa-se nas (in)decisões sobre o novo aeroporto para Lisboa (em ziguezague desde 1969) ou nas medidas da atual pandemia (foi também o comportamento que conduziu à explosão da mesma na China em janeiro de 2020).
Passa a ser um problema da sociedade em geral, pois uma cultura instalada custa a mudar. No norte da Europa levou séculos a implantar-se na mente dos seus cidadãos. No sul europeu prevalece ainda uma cultura de favores em privilégios (“cunhas”) ou até de mafias. Na sociedade portuguesa o problema é agravado com a decisão concentrada na enorme administração pública que absorve cada vez mais recursos, na burocracia que trava o sistema económico, em grandes escritórios de advogados que dominam a política e os grandes negócios (com o Estado) e no baixo nível médio de formação dos empresários. As soluções com base científica e técnica tendem a perder importância perante outros valores ineficientes em que poucos ganham e muitos perdem.
O ambiente não motiva para se criar valor real, mas antes estimula o (pequeno) negócio de resultados rápidos, regra geral ligado à transação de bens e serviços (como o imobiliário) produzidos com baixa eficiência (sem engenharia nem gestão profissional tidos como custo não como investimento). Neste mercado ineficiente, alguns ganham dinheiro por conta da perda de outros, numa expressão de soma zero, levando o país a perder competitividade.
Para sobreviverem neste sistema, muitos quadros técnicos têm de se conformar e adaptar à cultura vigente, comportando-se em semelhança. Outros, insatisfeitos, mas ambiciosos e exigentes, sentem a obrigação de emigrar para outras sociedades onde são bem recebidos. A maioria que fica tende a estagnar na profissão e no salário. A sociedade em geral também estagna (e valha a União Europeia como tábua de salvação).
Nos próximos tempos, poucas serão as sociedades vencedoras, mas exigirão mudança na cultura social, além de poderosos investimentos públicos que requerem a participação da engenharia e ciência como atores de relevo, não secundários. A alternativa de manter o status-quo será caminho certo para a pobreza relativa, pois esse paradigma não é de uma sociedade desenvolvida que cria riqueza.
É tema para a próxima parte do artigo.
Lisboa, 8 de março de 2021
João Correia Gomes
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